François Pierre de La Varenne
François Pierre de La Varenne (1615–1678) ocupa um lugar central na história da gastronomia por representar a passagem definitiva da cozinha medieval, marcada pela exuberância de especiarias, pela mistura de sabores agridoces e por técnicas pouco sistematizadas, para a cozinha moderna, mais racional, organizada e orientada para o sabor natural dos ingredientes. Conforme observam Flandrin e Montanari (1998), a obra de La Varenne não apenas marcou uma ruptura culinária, mas inaugurou um modo de pensar a cozinha que influenciaria profundamente os séculos seguintes.
A ruptura com a tradição medieval
Ao longo da Idade Média, a culinária aristocrática europeia caracterizava-se pela abundância simbólica e pela valorização de sabores intensos e exóticos, muitas vezes sobrepondo-se ao sabor original dos alimentos. Para Jean-François Revel (2006), esse modelo começa a perder força no século XVII, quando um novo ideal culinário emerge: a busca pelo equilíbrio, pela harmonia e pela naturalidade. La Varenne é um dos principais arquitetos dessa transformação.
Em Le Cuisinier François (1651), sua obra fundamental, ele apresenta um repertório técnico que privilegia o frescor, a simplicidade e a precisão, princípios que se tornariam os alicerces da culinária francesa. O livro também demonstra uma mudança cultural mais ampla: o refinamento do paladar europeu e o afastamento dos excessos medievais, conforme amplamente discutido por historiadores como Flandrin e Montanari (1998).

A consolidação de técnicas modernas
La Varenne é frequentemente lembrado por ter formalizado técnicas que hoje parecem elementares, mas que na época representaram uma verdadeira revolução. Uma das mais importantes é o roux, mistura de manteiga e farinha usada para espessar molhos. Embora o roux já existisse em versões rudimentares, foi La Varenne quem o descreveu com clareza e padronização, inaugurando o que mais tarde seria a base dos molhos-mãe da cozinha francesa.
Rebecca Spang (2010) observa que a clareza com que La Varenne apresenta fundos, caldos e espessantes foi determinante para que a cozinha francesa se tornasse uma disciplina técnica estruturada, e não apenas um conjunto de práticas empíricas transmitidas oralmente.
Outras contribuições importantes incluem:
- o uso sistemático de ervas frescas, como salsa, cebolinha e estragão, em substituição às especiarias excessivamente exóticas do período anterior;
- a valorização da manteiga e das gorduras animais locais, marcando uma diferença decisiva em relação à cozinha mediterrânea;
- a separação mais clara entre pratos doces e salgados;
- a organização de receitas com descrições objetivas e ordem lógica das etapas.
Essas mudanças configuram o que Rachel Laudan (2016) identifica como o início da “cozinha moderna”, baseada no método, na técnica e na busca pela clareza de sabores.
A vida profissional e o ambiente aristocrático
La Varenne trabalhou para figuras de alta nobreza, especialmente o marquês d’Uxelles. Desse ambiente surgiu a preparação duxelles, uma combinação de cogumelos picados, manteiga e ervas que se tornaria referência em bases aromáticas francesas. Mais do que uma invenção culinária, a duxelles simboliza a nova lógica francesa: ingredientes locais, técnica apurada e equilíbrio.
O contexto aristocrático também possibilitou ao autor acesso a ingredientes, utensílios e uma equipe de cozinha estruturada, algo essencial para que suas técnicas fossem desenvolvidas, registradas e difundidas. Como apontam Flandrin e Montanari (1998), a profissionalização das cozinhas aristocráticas foi determinante para o nascimento da figura do “chef moderno”, papel que La Varenne representou de maneira pioneira.
Um novo modelo editorial
Além do conteúdo culinário, Le Cuisinier François se destaca como marco editorial. La Varenne organiza o livro de forma objetiva, com vocabulário técnico acessível e descrições diretas das etapas de preparo. Segundo Spang (2010), esse formato influenciou profundamente os livros de cozinha subsequentes, inclusive aqueles de autores como Massialot e Menon.
Essa estrutura contribuiu para transformar o livro de culinária em instrumento pedagógico e profissional, e não apenas em registro de receitas familiares ou aristocráticas.
O legado e a influência duradoura
A influência de La Varenne ecoou por todo o século XVIII e chegou ao século XIX, sendo retomada e ampliada por grandes nomes como Antonin Carême e, posteriormente, Auguste Escoffier. Revel (2006) observa que o “espírito” inaugurado por La Varenne, o respeito ao sabor do ingrediente, o uso controlado de ervas, a clareza técnica, permanece como base conceitual da cozinha francesa.
Rachel Laudan (2016) reforça que La Varenne mudou não apenas o como se cozinhava, mas o porquê: sua obra expressa uma nova relação entre cozinha, sociedade e cultura, pautada por valores de precisão, estética e racionalidade que moldariam a gastronomia ocidental pelos próximos quatro séculos.
Por essas razões, François Pierre de La Varenne é reconhecido como um dos fundadores da culinária francesa moderna e uma figura indispensável para compreender o desenvolvimento histórico das técnicas, sabores e métodos que ainda hoje definem a alta cozinha.
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Eu sou graduada e pós graduada na área de gastronomia e compilei todos os anos de estudo em apostilas que estou transformando em um livro “Diário da Gastronomia. De Tudo… Um Pouco.” (Para saber mais acesse a página A Gastrônoma, A Autora, A Terapeuta, A Multiface). Através deste site postarei informações importantes que contribuirá para aumentar o conhecimento dos leitores na área de gastronomia A parte teórica pode ser encontrada na página “Conceitos e Teorias“. Quanto à prática, os leitores podem ir treinando com as “Receitas” postadas. Todas as receitas foram previamente testadas.
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FONTES IMAGENS: Adriana Tenchini
REFERÊNCIAS:
FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (Org.). História da Alimentação. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
LAUDAN, Rachel. Cozinha e Império: As origens da culinária moderna. Tradução de Adriano Scatolin. São Paulo: Senac São Paulo, 2016.
REVEL, Jean-François. Um Banquete de Palavras: Uma história pessoal da gastronomia francesa. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
SPANG, Rebecca L. A Invenção do Restaurante: Paris e a modernidade gastronômica. Tradução de Henrique de A. R. M. de Souza. São Paulo: Senac, 2010.
