Platina e a Gastronomia Renascentista
Bartolomeo Sacchi (1421–1481), conhecido pelo nome humanista Platina, é uma das figuras mais importantes do Renascimento no que diz respeito à organização do pensamento gastronômico europeu. Intelectual, bibliotecário do Vaticano, professor de retórica e membro ativo dos círculos humanistas italianos, Platina foi o responsável por escrever aquele que muitos historiadores consideram o primeiro tratado de culinária e alimentação da era moderna: De honesta voluptate et valetudine.
Sua obra marca uma virada profunda no modo como o Ocidente passou a compreender a comida. Diferentemente dos livros medievais, focados na prática culinária para banquetes aristocráticos, Platina introduziu uma visão intelectualizada, alinhada aos valores do Humanismo, que buscava conciliar prazer gastronômico, saúde e moderação. Esse conjunto de ideias inaugura o pensamento culinário renascentista e influencia a gastronomia europeia por séculos.
Humanista, erudito e observador da mesa renascentista
Platina viveu em plena efervescência cultural italiana, período em que o retorno aos autores clássicos moldava todas as áreas do conhecimento. Influenciado por textos de Hipócrates, Galeno, Ateneu e autores latinos, ele procurou reinterpretar as tradições médicas e dietéticas antigas para o contexto do século XV.
Em sua obra, a cozinha deixa de ser apenas técnica e se torna reflexão, tema de estudo e objeto de filosofia moral. Para Platina, comer não era apenas necessidade biológica, mas parte do comportamento virtuoso do homem educado. Sua contribuição foi, portanto, dupla: intelectual e gastronômica.
“De honesta voluptate et valetudine”
O primeiro best-seller gastronômico da modernidade
Escrito entre 1463 e 1465, o tratado De honesta voluptate et valetudine (“Do prazer honesto e da boa saúde”) é considerado o primeiro livro impresso de culinária a alcançar difusão internacional. Publicado em 1470, tornou-se um sucesso imediato, circulando em toda a Europa e sendo traduzido em diversas línguas.
A obra se destaca por diversos motivos:
- une gastronomia e dietética, explicando como o prazer de comer pode coexistir com a saúde;
- apresenta reflexões filosóficas sobre moderação, hábitos alimentares e virtudes à mesa;
- descreve preparações, ingredientes e modos de servir com base nas receitas do cozinheiro papal Maestro Martino, que Platina sistematizou e interpretou;
- organiza a alimentação dentro de uma lógica médica, moral e cultural, algo inédito até então.
Platina não era cozinheiro, era pensador, e por isso transformou receitas em conhecimento teórico, reafirmando a comida como parte da cultura e da identidade humana. Seu livro libertou a gastronomia da esfera exclusiva da técnica e a colocou no campo das artes liberais, comparável à retórica, música ou filosofia.
O encontro entre prazer, saúde e refinamento
A contribuição de Platina vai muito além de registrar receitas. Ele foi o primeiro autor a defender abertamente que o prazer culinário é legítimo, desde que acompanhado de equilíbrio e discernimento. Para ele:
- comer bem não era pecado;
- temperos e sabores deveriam servir à harmonia do corpo;
- a mesa era espaço de sociabilidade e civilidade;
- o cozinheiro deveria compreender princípios médicos e dietéticos, não apenas técnicas de fogo ou corte.
O pensamento de Platina cria, portanto, a base intelectual que dará origem, mais tarde, à alta gastronomia e à noção de convivialidade, tão importantes na culinária europeia moderna.
O impacto europeu e o legado duradouro
A influência de Platina foi imensa. Seu livro foi usado por:
- médicos, que o consideravam um guia dietético;
- nobres e cortes italianas, que seguiam suas recomendações de hábitos à mesa;
- cozinheiros, que adaptavam as receitas de Maestro Martino pelos comentários de Platina;
- intelectuais renascentistas, que o citavam como referência em temas de moralidade e comportamento.
Seu trabalho também contribuiu para difundir ingredientes recém-integrados à cultura europeia (como certas hortaliças, ervas e especiarias) e para consolidar a relação entre culinária, ciência e bem-estar, conceito que continua presente na gastronomia contemporânea.
Platina na história da gastronomia
Se Taillevent simboliza a sofisticação e a estruturação da cozinha medieval, Platina representa a virada intelectual do Renascimento, quando a comida passa a ser analisada, discutida, sistematizada e entendida de forma cultural.
Seu legado se mantém vivo porque:
- inaugurou o pensamento gastronômico moderno;
- aproximou cozinha e medicina;
- conferiu prestígio literário ao ato de comer;
- estabeleceu bases para os tratados gastronômicos posteriores, inclusive os franceses.
Platina é, em suma, uma das vozes responsáveis por transformar a gastronomia em parte essencial da identidade europeia, unindo conhecimento, prazer e civilidade à mesa.
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Eu sou graduada e pós graduada na área de gastronomia e compilei todos os anos de estudo em apostilas que estou transformando em um livro “Diário da Gastronomia. De Tudo… Um Pouco.” (Para saber mais acesse a página A Gastrônoma, A Autora, A Terapeuta, A Multiface). Através deste site postarei informações importantes que contribuirá para aumentar o conhecimento dos leitores na área de gastronomia A parte teórica pode ser encontrada na página “Conceitos e Teorias“. Quanto à prática, os leitores podem ir treinando com as “Receitas” postadas. Todas as receitas foram previamente testadas.
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FONTES IMAGENS: Adriana Tenchini
REFERÊNCIAS:
CAPATTI, Alberto; MONTANARI, Massimo. Italian cuisine: a cultural history. New York: Columbia University Press, 2003.
FRANCO, Ariovaldo. De caçador a gourmet. São Paulo: Senac São Paulo, 2004.
GILMORE, Myron. The world of humanism 1453–1517. New York: Harper & Row, 1952.
MONTANARI, Massimo. A fome e a abundância: história da alimentação na Europa. São Paulo: Senac São Paulo, 2003.
PLATINA, Bartolomeo. De honesta voluptate et valetudine. Edição crítica. Local e editora variáveis conforme edição.
SCULLY, Terence. The art of cooking: the first modern cookery book. Berkeley: University of California Press, 2005.
