Costume à Mesa dos Hebreus
Entre Tendas e Tribos: Origem e Estilo de Vida
Antes da consolidação do reino de Israel ou mesmo da codificação de sua religião monoteísta, os hebreus existiam como clãs seminômades que percorriam as regiões da Mesopotâmia e do Crescente Fértil, especialmente entre os rios Eufrates e Tigre. Por volta de 2000 a.C., esses grupos ainda não formavam uma identidade nacional coesa, mas compartilhavam práticas pastorais, culto a divindades tribais e uma cultura alicerçada na oralidade, no parentesco e na adaptação às adversidades naturais das regiões áridas e semiáridas (FRANCO JÚNIOR, 2001).

A alimentação refletia esse modo de vida nômade: ovelhas e cabras forneciam leite, carne e peles; tâmaras e grãos coletados compunham refeições simples; e o leite coalhado era um alimento fundamental. A caça e a coleta estavam presentes, mas foram gradualmente substituídas pela pecuária e, posteriormente, por uma agricultura rudimentar. Essa subsistência era moldada pela mobilidade e pela escassez, sendo regulada por tradições tribais que orientavam o uso dos alimentos e seu simbolismo social.
Entre a Terra Prometida e o Deserto: Contexto Histórico e Geográfico
A cultura hebraica desenvolveu-se na região da Palestina histórica, entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão, um ponto estratégico de intercâmbio entre as civilizações egípcia e mesopotâmica. Essa localização expôs os hebreus a uma constante tensão entre assimilação cultural e afirmação identitária. A passagem de uma sociedade tribal a uma monarquia unificada sob reis como Saul, Davi e Salomão marcou também uma transição alimentar: do consumo de subsistência para práticas culinárias reguladas por leis religiosas e simbolismos sociais (FRIEDMAN, 2008).
A religião, centrada no monoteísmo e na Torá, moldou profundamente a alimentação. Comer, nesse contexto, era também um ato de obediência e santificação, conforme o princípio judaico do “kashrut”, o conjunto de leis dietéticas que ordena o que é permitido ou proibido.
Sustento da Terra: Agricultura, Pecuária e Pesca
Na vida cotidiana, predominava a agricultura familiar de subsistência, adaptada ao clima semiárido. Trigo e cevada compunham a base da dieta, usados para preparar pães, mingaus e massas. A videira fornecia uvas e vinho, essenciais tanto para consumo diário quanto para celebrações e rituais religiosos. A oliveira, símbolo de paz e prosperidade, fornecia azeite usado na alimentação, unção e iluminação (LEFEBVRE, 2015).
Hortas e pomares rendiam figos, romãs, tâmaras, uvas, lentilhas, grão de bico e amêndoas. Com irrigação limitada, cultivavam-se também pepinos, cebolas, alfaces e alhos. A pecuária era voltada para o leite e seus derivados; a carne era consumida com moderação, em ocasiões festivas ou rituais, sempre mediante abate ritual (shechitá). O leite de cabra era mais comum que o de vaca e amplamente utilizado para produção de queijos frescos.
Em regiões próximas ao Mar da Galileia e ao Rio Jordão, a pesca era relevante. Os peixes eram consumidos frescos ou salgados, compondo uma alternativa viável à carne. O pescado também aparecia em oferendas e refeições sabáticas, com presença simbólica nas festividades.
Técnicas, Utensílios e Formas de Preparo
A cozinha hebraica antiga valorizava a simplicidade e a funcionalidade. O pão era feito com massa de trigo ou cevada e assado em fornos de barro (tannur) ou em pedras aquecidas. Os grãos eram moídos manualmente em moinhos de pedra, e os alimentos cozidos em potes de cerâmica sobre brasas ou enterrados em fornos rudimentares. Caldos e ensopados com leguminosas e hortaliças eram comuns.

O azeite de oliva servia tanto para frituras quanto como condimento. A fermentação era uma técnica conhecida, embora restrita em certas ocasiões, como no Pessach[1], quando o pão fermentado era proibido (KASSER, 2006). Conservas de frutas secas, salmouras e a desidratação eram formas de preservar alimentos fora do período de colheita.
Utensílios incluíam tigelas, jarras, pás de madeira e cestos de fibras vegetais. As refeições eram tomadas em pequenos grupos familiares, sentados ao chão ou em mesas baixas, com forte sentido comunitário e espiritual.
Cotidiano Sagrado: Hábitos e Rituais Alimentares
Grande parte do conhecimento sobre a alimentação dos hebreus provém da Bíblia, especialmente do Pentateuco, onde Moisés estabelece normas alimentares como parte da aliança com Deus. A Torá distingue entre animais puros e impuros, segundo critérios morais e simbólicos: animais terrestres deveriam ter cascos fendidos e ruminar; peixes deveriam ter escamas e nadadeiras; e aves não deviam ser carniceiras ou aquáticas. Porcos, moluscos, crustáceos, répteis e aves de rapina eram considerados impuros e, portanto, proibidos (BÍBLIA SAGRADA, Levítico 11; Deuteronômio 14, Almeida Revista e Atualizada).
A proibição do sangue como alimento possuía fundamento espiritual: o sangue simbolizava a vida (nefesh) e não podia ser consumido. O abate ritual incluía a drenagem completa do sangue, seguida de processos de salmoura e repouso. Outra norma central era a proibição de misturar leite e carne, baseada na injunção bíblica: “Não cozerás o cabrito no leite de sua mãe” (BÍBLIA Sagrada, Êxodo 23:19, Almeida Revista e Atualizada). Essa determinação deu origem a práticas culinárias específicas, como o uso de utensílios separados para carne e laticínios, além de intervalos obrigatórios entre o consumo de ambos.
Durante o Pessach (Páscoa judaica), o pão fermentado é substituído pelo matzá (pão ázimo), em memória da saída apressada do Egito. O cordeiro pascal era assado e consumido em família, como ritual central. A refeição, portanto, tornava-se também momento de ensino religioso, celebração da liberdade e reafirmação da identidade.
Trocas Culturais e Influências Externas
Apesar da rigidez das leis dietéticas, os hebreus mantiveram contato com outros povos. No Egito, absorveram técnicas agrícolas e métodos de irrigação. Durante o exílio babilônico, foram expostos ao uso de especiarias, fermentações sofisticadas e utensílios cerâmicos mais elaborados. A convivência com fenícios, persas e gregos também trouxe influências, embora filtradas pela lente da ortodoxia religiosa (PITTA, 2021).
Em contrapartida, a tradição hebraica deixou marcas duradouras. O uso ritual do vinho, do pão e do azeite foi incorporado por outras culturas mediterrâneas e religiões monoteístas. As leis de pureza alimentícia influenciaram costumes do cristianismo primitivo e do islamismo, como o consumo de alimentos “puros”, o jejum e a bênção sobre o alimento.
Curiosidades e Legado dos Hebreus na Gastronomia Mundial
- Precursores da alimentação consciente: Os hebreus viam o ato de comer como espiritual e ético. Isso ecoa nos movimentos modernos de alimentação saudável e sustentável, que buscam respeito à vida e à natureza.
- Kosher[2] e segurança alimentar: As regras de kashrut influenciaram práticas de higiene e segurança alimentar muito antes da ciência moderna. O abate ritual, a inspeção de carnes e a proibição de alimentos deteriorados tinham também um papel profilático.
- Dieta mediterrânea ancestral: Muitos dos alimentos da dieta hebraica, como azeite, grãos, leguminosas, frutas secas, ervas e peixe, compõem a base da dieta mediterrânea, hoje considerada uma das mais saudáveis do mundo.
- Preservação cultural na diáspora[3]: Ao longo dos séculos, a culinária judaica floresceu em contextos diversos, resultando em pratos típicos como o cholent (ensopado do sábado), latkes (panquecas de batata), gefilte fish (bolo de peixe) e doces com mel e especiarias. Cada comunidade trouxe variações, mas os princípios se mantiveram.
- Influência sobre outras religiões: Muitas tradições alimentares do cristianismo e do islamismo têm raízes nas leis dietéticas hebraicas, como o respeito ao jejum, a bênção sobre o alimento e a ideia de “pureza” na ingestão.
A alimentação entre os hebreus antigos revela-se não apenas um instrumento de sobrevivência, mas um meio de transmitir valores, estabelecer identidades e manter coesão social. Sua culinária, marcada pela espiritualidade e pela ética, atravessa os séculos e permanece viva nas tradições judaicas e em outras culturas que dela herdaram influências.
[1] Pessach é a Páscoa judaica, comemorada durante sete ou oito dias (dependendo da tradição), em memória da libertação dos hebreus da escravidão no Egito, conforme descrito no livro do Êxodo. Durante esse período, é proibido o consumo de alimentos fermentados (chametz), e realiza-se o Sêder de Pessach, uma refeição ritual que rememora a saída do Egito com alimentos simbólicos.
[2] Kosher (ou kashrut) – é o conjunto de leis alimentares do judaísmo, que determinam o que é permitido ou proibido comer segundo a tradição religiosa. A palavra “kosher” significa literalmente “próprio”, “adequado” ou “em conformidade” – ou seja, alimentos que estão de acordo com as regras estabelecidas pela Torá (os cinco primeiros livros da Bíblia hebraica). Essas leis têm origem na Bíblia, principalmente nos livros de Levítico e Deuteronômio, e foram desenvolvidas ao longo dos séculos por rabinos e estudiosos.
[3] Diáspora – é um termo que se refere à dispersão de um povo fora de sua terra de origem, especialmente quando essa dispersão ocorre por perseguição, guerra, exílio ou migração forçada. Embora o termo possa ser usado para diversos povos ao longo da história, ele é mais conhecido em relação ao povo judeu.

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Eu sou graduada e pós graduada na área de gastronomia e compilei todos os anos de estudo em apostilas que estou transformando em um livro “Diário da Gastronomia. De Tudo… Um Pouco.” (Para saber mais acesse a página A Gastrônoma, A Autora, A Terapeuta, A Multiface). Através deste site postarei informações importantes que contribuirá para aumentar o conhecimento dos leitores na área de gastronomia A parte teórica pode ser encontrada na página “Conceitos e Teorias“. Quanto à prática, os leitores podem ir treinando com as “Receitas” postadas. Todas as receitas foram previamente testadas.
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REFERÊNCIAS:
BÍBLIA Sagrada. Almeida Revista e Atualizada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1997.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001.
FRIEDMAN, Richard Elliott. Quem escreveu a Bíblia? São Paulo: Editora Imago, 2008.
KASSER, Rodolphe. Os Evangelhos Gnósticos de Nag Hammadi. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
LEFEBVRE, Henri. O cotidiano e a alimentação nas civilizações antigas. Rio de Janeiro: Vozes, 2015.
PITTA, Frei Carlos. História da alimentação: um olhar cristão. São Paulo: Loyola, 2021.
TORÁ. Pentateuco: Êxodo, Levítico, Deuteronômio. Tradução direta do hebraico. São Paulo: Sêfer, 2010.
