Outras Mesas do Mundo Medieval
Apesar de o termo “Idade Média” ser uma construção europeia, o período entre os séculos V e XV testemunhou intensas dinâmicas alimentares em diferentes partes do mundo. Civilizações asiáticas, africanas e islâmicas desenvolveram saberes culinários sofisticados, que não só refletiam seus contextos históricos e culturais, como também impactaram as trocas gastronômicas globais que viriam com a expansão mercantil e marítima.
Mundo Islâmico: refinamento, especiarias e heranças clássicas
Com o surgimento do Islã no século VII, o mundo árabe expandiu-se rapidamente, criando um vasto califado que ia da Península Ibérica até a Índia. Essa unificação territorial facilitou a circulação de ingredientes, técnicas e manuscritos culinários, muitos dos quais preservaram saberes greco-romanos. A culinária árabe medieval era marcada pelo uso abundante de especiarias, xaropes de frutas, destilados florais e pratos aromatizados com canela, água de rosas e noz moscada.
No século X, o califa de Bagdá encomendou o Kitab al-Tabikh (Livro de Receitas), atribuído a Ibn Sayyar al-Warraq, uma das obras culinárias mais importantes do período. O tratado registra centenas de receitas e práticas alimentares da elite abássida, revelando um grau de refinamento que rivalizava com os banquetes europeus contemporâneos. Conforme discutido nos estudos sobre a história da alimentação, a gastronomia árabe medieval articulava saber médico, apreço pelo luxo e uma elaborada estética da mesa, exercendo forte influência sobre outras tradições culinárias do Mediterrâneo medieval (FLANDRIN; MONTANARI, 2001).
Entre os pratos típicos, estavam os ensopados com cordeiro e tâmaras, os arrozes aromáticos e as pastas condimentadas servidas com pães finos. A doçaria incluía halawas, confeitos de mel, nozes e especiarias, muitos dos quais seriam levados para a Europa durante as Cruzadas.
China: técnicas sofisticadas e visão cosmológica dos alimentos
Durante a Idade Média europeia, a China viveu períodos de grande esplendor sob as dinastias Tang (618–907), Song (960–1279) e Yuan (1271–1368). A alimentação chinesa combinava a medicina tradicional com a filosofia yin-yang, buscando harmonia entre quente e frio, seco e úmido, leve e pesado.
Na China medieval, a comida era compreendida não apenas como nutrição, mas como elemento de equilíbrio vital do organismo, princípio que orientava desde a escolha dos ingredientes até os modos de preparo. Técnicas como o cozimento a vapor, a fritura rápida em recipientes profundos (como o wok) e os cozimentos em caldos aromáticos à base de ervas e especiarias eram predominantes. Utilizavam-se amplamente arroz, milheto, soja, carnes diversas, além de vegetais fermentados e molhos como os derivados da soja, que desempenhavam papel central na construção dos sabores (FLANDRIN; MONTANARI, 2001).
Durante a dinastia Song, os mercados urbanos ofereceram uma variedade espantosa de comidas prontas, vendidas por ambulantes: bolinhos cozidos no vapor, massas em caldo, chá verde e até doces de gergelim. Havia uma cultura alimentar urbana dinâmica, que antecedeu em séculos as experiências europeias semelhantes.
Índia: diversidade, especiarias e tradições milenares
Na mesma época da Idade Média europeia, a Índia vivia sob o domínio de vários reinos, incluindo os Impérios Gupta e, posteriormente, os Sultanatos e o Império Mughal. A culinária indiana medieval refletia essa complexidade política e cultural, com uma vasta utilização de especiarias, como açafrão, cardamomo, cominho, gengibre e pimenta, que conferiam aromas intensos e propriedades medicinais aos alimentos.
Na Índia medieval, a alimentação estava profundamente associada à religiosidade, às castas e às especificidades regionais, resultando em uma gastronomia altamente diversificada e carregada de simbolismo. Pratos à base de arroz, lentilhas (dal), verduras, iogurte e pães como o naan eram amplamente consumidos, coexistindo com elaboradas preparações de carne nas regiões sob influência muçulmana (FLANDRIN; MONTANARI, 2001).
A tradição ayurvédica orientava a dieta para manter o equilíbrio dos doshas (humores corporais), indicando alimentos e métodos de cocção específicos para a saúde do indivíduo. O uso do fogo e do carvão para grelhar carnes, o cozimento lento em caldos aromáticos e a fermentação natural de pães eram técnicas bastante empregadas.
Japão: simplicidade, harmonia e respeito à sazonalidade
Durante o período Heian (794–1185) e Kamakura (1185–1333), no Japão medieval, a culinária se consolidava influenciada pelo budismo e pelos costumes imperiais. A alimentação valorizava a simplicidade, a harmonia visual e o respeito às estações do ano.
No Japão medieval, a cozinha estava fortemente associada a princípios estéticos e simbólicos, nos quais o preparo e a apresentação dos alimentos expressavam equilíbrio, simplicidade e reverência à natureza. O arroz constituía a base da alimentação, acompanhado de peixes, algas, soja, vegetais em conserva e sopas leves. As técnicas de preparo privilegiavam o cozimento a vapor e a fervura suave, com uso reduzido de gordura e temperos delicados, como os derivados da soja, entre eles o missô e o shoyu (FLANDRIN; MONTANARI, 2001).
A cerimônia do chá, que se consolidaria nos séculos posteriores, tem raízes já no final da Idade Média japonesa, simbolizando uma espiritualidade gastronômica.
África Subsaariana: agricultura, caça e tradições orais
Enquanto isso, no continente africano, diversas culturas e reinos, como o Império de Gana e o Mali, viviam em sociedades agrícolas, pastorais e de caça. A alimentação era baseada em cereais como sorgo, milheto, e tubérculos, além da caça e pesca em rios e lagos.
Na África medieval, a culinária caracterizava-se pela utilização criativa dos ingredientes locais, pelo emprego de especiarias e pelo papel central dos alimentos nos rituais sociais e religiosos. Os pratos frequentemente combinavam grãos com molhos espessos à base de folhas, amendoim e raízes, enquanto a fermentação natural de cereais era amplamente utilizada na produção de bebidas e pães (FLANDRIN; MONTANARI, 2001).
A transmissão do conhecimento culinário ocorria via tradições orais, com receitas e técnicas passadas entre gerações sem registros escritos formais.
Mesoamérica: agricultura intensiva e a base do milho
Na região que hoje compreende México e América Central, as civilizações maia e asteca desenvolviam práticas agrícolas altamente sofisticadas, centradas no cultivo do milho, feijão, abóbora e pimentas.
Nas sociedades mesoamericanas, contemporâneas ao período medieval europeu, a dieta baseava-se no milho não apenas como alimento, mas como elemento cultural e religioso fundamental. A tortilha, preparada a partir do milho nixtamalizado, constituía o alimento básico, acompanhada de caldos de feijão, molhos picantes e diversos insetos comestíveis. Os rituais alimentares eram complexos e profundamente ligados a crenças cosmológicas, evidenciando a estreita conexão entre alimentação, organização social e espiritualidade (FLANDRIN; MONTANARI, 2001).

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Eu sou graduada e pós graduada na área de gastronomia e compilei todos os anos de estudo em apostilas que estou transformando em um livro “Diário da Gastronomia. De Tudo… Um Pouco.” (Para saber mais acesse a página A Gastrônoma, A Autora, A Terapeuta, A Multiface). Através deste site postarei informações importantes que contribuirá para aumentar o conhecimento dos leitores na área de gastronomia A parte teórica pode ser encontrada na página “Conceitos e Teorias“. Quanto à prática, os leitores podem ir treinando com as “Receitas” postadas. Todas as receitas foram previamente testadas.
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FONTES IMAGENS: Adriana Tenchini
REFERÊNCIAS:
FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (orgs.). História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
MONTANARI, Massimo. A fome e a abundância: uma história da alimentação na Europa. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Estação Liberdade, 2008.
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. Tradução de Letícia Martins de Andrade. São Paulo: SENAC São Paulo, 2008.
