Culinária Romana
Fases da Civilização Romana
A civilização romana exerceu profunda influência sobre a história ocidental, moldando aspectos políticos, artísticos, linguísticos, filosóficos e alimentares. Desenvolveu-se em três grandes fases:
- Monarquia (753 – 509 a.C.) – Estabelecida após as invasões etruscas, foi liderada por sete reis. O poder concentrava-se nos patrícios[1], descendentes dos fundadores. As tensões sociais provocadas pelos altos tributos e pela exploração da plebe culminaram no fim da Monarquia.
- República (509 – 27 a.C.) – Foi um período de grandes conquistas militares e expansão territorial. Roma passou a dominar a Grécia, Macedônia, Península Ibérica, Gália, Síria, Egito e norte da África. Isso trouxe novas influências culturais e alimentares.
- Império (27 a.C. – 476 d.C.) – O Alto Império (27 a.C. – 235 d.C.) foi marcado por paz e prosperidade: a Pax Romana[2]. Já o Baixo Império (235 – 476 d.C.) assistiu a crises internas e externas, como as invasões bárbaras. Em 324 d.C., Constantino dividiu o império em dois: o Ocidental, com capital em Roma, e o Oriental, com capital em Bizâncio (posteriormente Constantinopla).
Origens e Formação Cultural: Da Pré-História à Antiguidade

Antes da fundação de Roma, os povos que habitavam a Península Itálica, como latinos, sabinos e etruscos, viviam de uma economia baseada na coleta, caça e agricultura rudimentar. Com a sedentarização, consolidou-se o cultivo de cereais, como o trigo, e leguminosas, como lentilhas e favas, além da domesticação de animais. Roma, nascida às margens do Tibre, cresceu em um ponto estratégico para o comércio de alimentos e o desenvolvimento agrícola, favorecendo o surgimento de práticas culinárias complexas (MONTANARI, 2008).
Durante a República, predominava uma dieta simples e autossuficiente, centrada em cereais, leguminosas e produtos animais básicos. Com a expansão do Império, a culinária romana adquiriu sofisticação e diversidade, incorporando influências de povos conquistados, sobretudo da Grécia, e tornando a mesa um espaço de representação social, cultural e simbólica (MONTANARI, 2008).
Alimentos Básicos: Trigo, Azeitona e Uva
O trigo, a azeitona e a uva eram os pilares simbólicos da civilização romana. Deles se extraíam o pão, o azeite e o vinho, produtos que transcenderam a simples nutrição para se tornarem elementos identitários e políticos da cultura romana. Essas transformações representavam o triunfo da cultura sobre a barbárie.
O Pão era o produto mais emblemático da transformação cultural dos alimentos. Diferente dos alimentos crus ou colhidos diretamente da natureza, o pão exigia cultivo, moagem, amassamento, fermentação e cocção. É o alimento que separa o homem do animal e o bárbaro do civilizado. A importância do pão era tamanha que a distribuição pública do alimento, o annona, tornava-se símbolo de estabilidade social. A panificação era inicialmente tarefa feminina, mas a partir do século III a.C., surgiram os primeiros padeiros profissionais (pistores) e as padarias públicas (pistrina). Existiam três qualidades principais de pão:
- Panis Mundus – Pão branco, de primeira qualidade.
- Panis Secundarius – Farinha com mais farelo.
- Panis Sordidus – De qualidade inferior, para os pobres.
Azeitonas e Azeite desempenhavam múltiplos papéis: na alimentação, na higiene, nos rituais religiosos, na medicina e até na iluminação doméstica e pública. O azeite era um dos produtos mais valorizados do mundo romano, símbolo de pureza, prosperidade e civilização.
O Vinho era base da sociabilidade e da cultura. Além do consumo diluído, o vinho simbolizava hospitalidade, convivialidade e até práticas religiosas. Outras bebidas fermentadas, como posca[3] e hidromel[4], mostram a diversidade do consumo alcoólico romano.
Garum: O Condimento da Civilização
O garum, ou garo, era um molho fermentado à base de vísceras de peixe e sal, amplamente utilizado na culinária romana. Produzido em larga escala em oficinas especializadas e distribuído por diferentes regiões do Mediterrâneo, o garum evidencia a existência de um sistema alimentar organizado e interligado no mundo romano. Apesar de seu odor forte e sabor intenso, era considerado um ingrediente essencial em inúmeras preparações culinárias, sendo valorizado pela complexidade gustativa e pelos significados culturais associados ao seu consumo (MONTANARI, 2008).

Carne e Produtos Animais: Entre o Sacrifício e o Consumo
A carne era um alimento carregado de simbolismo. Seu consumo ocorria, em grande parte, no contexto dos sacrifícios religiosos, quando os animais eram oferecidos aos deuses e parte da carne era compartilhada pela comunidade. As elites, por sua vez, tinham acesso frequente a carnes variadas, como aves exóticas, caça, frutos do mar, enquanto os pobres raramente a consumiam (MONTANARI, 2008).
Cultivos Diversificados e o Desenvolvimento da Agricultura
A agricultura romana desenvolveu-se progressivamente com a adoção de práticas como a rotação de culturas, o uso de adubos orgânicos e sistemas de irrigação. Cultivavam-se hortaliças, frutas e leguminosas, como alface, repolho, beterraba, figos, maçãs, uvas e diferentes tipos de grãos, compondo uma dieta rica e variada. Essa diversidade alimentar atendia tanto às necessidades nutricionais quanto às prescrições médicas da época, além de refletir a sofisticação e a complexidade dos hábitos alimentares no mundo romano (MONTANARI, 2008).
A Dietética: Equilíbrio Humoral e Saúde
Na Roma Antiga, a alimentação era concebida não apenas como sustento, mas como um importante agente terapêutico. Esse princípio era herdado da tradição grega, especialmente da medicina hipocrática, que estabeleceu as bases da dietética, ou seja, o conjunto de práticas voltadas à manutenção da saúde por meio da alimentação, higiene e estilo de vida.
Hipócrates (c. 460–370 a.C.), considerado o “pai da medicina”, formulou a ideia de que a saúde dependia do equilíbrio entre os quatro humores corporais: sangue, fleuma, bile amarela e bile negra. Cada um desses humores estava associado a características físicas, emocionais e ambientais (como clima e estações do ano), e o papel do médico seria manter ou restaurar esse equilíbrio. A alimentação, portanto, era vista como fundamental para essa regulação.
Para Hipócrates, “teu alimento seja teu remédio, e teu remédio seja teu alimento”. Segundo ele, os alimentos tinham qualidades como quente ou frio, seco ou úmido, que podiam reforçar ou compensar características do corpo. Assim, a escolha de ingredientes e preparações devia considerar o estado de saúde, idade, temperamento e até o clima. A carne, por exemplo, era considerada pesada e geradora de calor; vegetais crus, por sua vez, frios e úmidos. Essa tradição foi desenvolvida por autores romanos como Cornelius Celsus, que afirmou: “O pão contém mais elementos nutritivos do que qualquer outro alimento.”
E principalmente por Galeno (129–199 d.C.), médico grego da corte do imperador Marco Aurélio, que sistematizou a dietética em tratados que permaneceram como referência médica por mais de mil anos. Galeno classificava os alimentos segundo seus efeitos no corpo e prescrevia dietas personalizadas, adaptadas aos humores, às estações do ano e às atividades cotidianas. Por exemplo:
- No inverno, recomendava-se consumir alimentos mais quentes, secos e calóricos.
- Idosos deveriam evitar alimentos frios e úmidos, como queijos curados e massas.
- Pessoas de constituição biliosa[5] deviam evitar alimentos que agravassem o calor, como especiarias picantes.
Além disso, acreditava-se que os alimentos também possuíam uma virtude espiritual e moral. Comer de modo moderado e equilibrado era sinal de racionalidade e domínio de si. Excesso à mesa era considerado indício de decadência moral. Essa concepção influenciou não apenas a prática médica, mas também a filosofia estoica e epicurista, que valorizavam a moderação. Portanto, a dietética greco-romana associava a saúde à harmonia entre natureza, corpo e comportamento, sendo a culinária um instrumento direto de cura e equilíbrio.
Técnicas Culinárias e Utensílios: Sofisticação e Variedade
A culinária romana desenvolveu-se a partir de uma tradição camponesa simples, mas, com a expansão territorial e a influência grega e oriental, passou a integrar ingredientes, técnicas e utensílios diversos, tornando-se altamente sofisticada. Cozinhava-se por fervura, assados, grelhados, defumação, fritura em gordura ou azeite e até cozimento indireto em brasas cobertas por cinzas.
Os utensílios incluíam panelas de barro, caçarolas de bronze, grelhas, espetos, moedores de grãos, almofarizes e pilões, além de fornos de alvenaria e brasas para cozinhar lentamente. Os ricos contavam com cozinheiros especializados e escravos treinados que operavam verdadeiras oficinas gastronômicas.
A construção dos sabores era refinada. Os romanos buscavam camadas de contraste entre doce, salgado, ácido e amargo, muitas vezes em um mesmo prato, como era típico nas receitas descritas no “De Re Coquinaria de Apicius”. Esse equilíbrio sensorial era alcançado através de uma cuidadosa combinação de ervas, especiarias e ingredientes fermentados, como o garum.
Ervas e Especiarias Usadas em Roma
As ervas aromáticas e especiarias[6] constituíam a base do tempero romano e eram usadas não apenas para dar sabor, mas também por motivos medicinais e simbólicos. Algumas das mais comuns incluíam:
- Cominho (cuminum) – Muito usado no pão e em carnes assadas.
- Coentro (coriandrum) – Suas sementes e folhas eram adicionadas a molhos e conservas.
- Anis (anisum) – Valorizado em preparações doces e digestivas.
- Endro (anethum) – Utilizado em conservas, pratos com peixe e pães.
- Erva-doce (foeniculum) – Presente em ensopados e pães, também apreciada por suas propriedades medicinais.
- Sementes de papoula – Usadas na panificação e doces.
- Alcaparras – Empregadas para dar acidez e intensidade a molhos.
- Sálvia, alecrim e tomilho – Essenciais em assados de carne e aves.
- Hortelã e manjerona – Usadas tanto em pratos salgados quanto doces.
- Cebolinha, alho-poró e alho – Base para cozidos e molhos.
- Loureiro (folhas de louro) – Fundamental em caldos e marinadas.
- Pimenta-do-reino – Apesar de importada da Índia, era amplamente utilizada nas cozinhas nobres.
- Gengibre, canela e cravo – Ingredientes raros e caros, usados com parcimônia em receitas de elite.
- Vinagre aromatizado e vinhos condimentados – Eram usados como base para molhos e marinadas.
Muitos pratos apresentavam misturas inusitadas aos olhos modernos, como carne de caça com mel, peixes com frutas secas ou patês temperados com garum e vinho. A lógica da culinária romana não era apenas gustativa, mas também médica, simbólica e social, pois os alimentos deveriam proporcionar prazer, equilíbrio corporal e expressar distinção cultural. Esse uso elaborado de especiarias e ervas, tanto locais quanto importadas do Oriente, revela a interconexão da gastronomia romana com o comércio internacional, o saber médico e a estética dos sabores complexos.
Rituais, Hábitos Alimentares e o Luxo dos Banquetes Romanos

A plebe comia pão, queijo, legumes e vinho diluído. Os patrícios participavam dos convivium, jantares com entradas (gustatio), prato principal (mensae primae) e sobremesas (mensae secundae). Comer reclinado em triclínio[7] era um ato de status. As refeições tinham função social, religiosa e política.
O convivium era uma experiência estética que ia além do alimento. Incluía rituais de purificação, troca de roupas, distribuição de guirlandas, danças, música e teatralidade. A etiqueta era rigorosa: o anfitrião sentava-se ao centro; o convidado de honra à sua direita. Os lugares indicavam status.
Os alimentos incluíam carnes exóticas, peixes, aves raras, frutas frescas e secas, bolos e muito vinho. Em alguns casos, construíam-se vomitórios, para permitir que os comensais voltassem a comer após esvaziarem o estômago. Leal (1998) lembra que a expressão “o jantar está na mesa” se origina do hábito de colocar tudo de uma vez para que cada um se servisse. A tradição do jantar em etapas, a posição social à mesa e a hospitalidade derivam dessa prática.
Os banquetes também tinham dimensão cívica e religiosa, herança grega integrada ao costume romano. O symposium grego e o convivium romano estruturavam relações sociais e distinção de classes.
Legado e Influências Posteriores
Os romanos deixaram um legado duradouro na culinária: o uso de entradas, pratos principais e sobremesas, o papel do cozinheiro como artista e o apelo estético da mesa. O livro “De Re Coquinaria”, atribuído a Apicius, compila 468 receitas, algumas com garum, mel, vinagre e especiarias, revelando o refinamento da arte culinária.
A Queda de Roma e a Transição Alimentar
Com a queda do Império Romano do Ocidente em 476 d.C., deu-se início à Idade Média. A instabilidade política, as fomes e epidemias levaram ao declínio das práticas culinárias refinadas. Muitos saberes gastronômicos foram perdidos, mas a herança romana permaneceu latente nas tradições monásticas, na cultura mediterrânea e na formação da culinária europeia.
[1] Patrícios: membros da elite aristocrática romana, descendentes das famílias fundadoras da cidade. Detinham privilégios políticos, sociais e econômicos, especialmente durante a Monarquia e os primeiros tempos da República. Ao longo do tempo, embora tenham perdido exclusividade em certos cargos públicos, mantiveram prestígio e riqueza.
[2] Pax Romana: expressão em latim que significa “Paz Romana”, refere-se ao longo período de estabilidade e prosperidade no interior do Império Romano, que se estendeu aproximadamente do governo de Augusto (27 a.C.) até o final do reinado de Marco Aurélio (180 d.C.). Durante essa fase, houve intensa atividade econômica, ampliação das redes comerciais, integração cultural entre os povos dominados e fortalecimento da infraestrutura imperial.
[3] Posca: bebida comum entre soldados e camadas populares da Roma Antiga, feita a partir da mistura de vinagre (ou vinho azedo) com água. Tinha sabor ácido e refrescante, sendo valorizada por sua durabilidade e propriedades antissépticas. Era considerada um substituto mais barato ao vinho.
[4] Hidromel: também conhecido como mulsum quando adoçado com vinho, era uma bebida fermentada obtida da mistura de mel com água. De origem muito antiga, era consumida tanto por romanos quanto por outros povos mediterrâneos, e associada a rituais, celebrações e benefícios medicinais.
[5] A constituição biliosa era uma das quatro tipologias corporais da teoria dos humores, proposta por Hipócrates e sistematizada por Galeno. Relacionava-se à predominância da bile amarela, considerada quente e seca, e atribuía ao indivíduo características como impulsividade, vigor físico e tendência à irritabilidade. A dieta recomendada para os biliosos buscava equilibrar seu calor e secura com alimentos úmidos e refrescantes.
[6] As especiarias utilizadas na Roma Antiga provinham tanto do território local quanto de rotas comerciais longínquas, como as da Índia, Arábia e Norte da África. O comércio de especiarias era altamente valorizado e regulado, sendo a pimenta-do-reino, a canela, o gengibre e o cravo itens de luxo, acessíveis apenas à elite. Já ervas aromáticas como o cominho, o coentro, a erva-doce, o alho, o louro e o tomilho eram cultivados localmente e utilizadas em lares de todas as classes. Além do valor gustativo, essas plantas carregavam conotações medicinais e simbólicas, estando associadas ao equilíbrio dos humores corporais, à purificação e até a proteção espiritual.
[7] Triclínio é o nome dado ao tipo de mobiliário utilizado pelos romanos para as refeições formais, especialmente nos banquetes. Consistia em três camas ou sofás baixos dispostos em forma de “U”, onde os convivas se reclinavam sobre o lado esquerdo enquanto comiam com a mão direita. Essa posição simbolizava status e conforto social durante as refeições..

Indicação de Receitas:
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FONTES IMAGENS: Imagens Adriana Tenchini
REFERÊNCIAS:
DALBY, Andrew. História da gastronomia: da Antiguidade aos dias atuais. São Paulo: Senac São Paulo, 2003.
LEAL, Flávio. A mesa romana: rituais, alimentos e cultura. Rio de Janeiro: Record, 1998.
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. Tradução de André Telles. São Paulo: Senac São Paulo, 2008.
