Simbologia dos Alimentos nas Culturas e Religiões
Ao longo da história, os alimentos transcenderam sua função biológica de nutrir e passaram a ocupar papéis simbólicos, religiosos e identitários nas mais diversas culturas. Comer é um ato carregado de significados, e muitos ingredientes cotidianos tornaram-se marcadores de identidade, ritos de passagem, expressões de fé e ferramentas de comunicação espiritual. Como escreveu Claude Lévi-Strauss, “os alimentos são bons para comer, mas também são bons para pensar” (apud FLANDRIN; MONTANARI, 2001).
O Sal: pureza, pacto e proteção
Poucos elementos têm tamanha carga simbólica quanto o sal. Essencial para a sobrevivência humana, seu poder de conservar alimentos e seu caráter incorruptível o tornaram símbolo de pureza, permanência e pacto em várias culturas.
No Japão, o sal é amplamente utilizado em rituais de purificação. Após a saída de uma visita indesejada, polvilha-se sal na soleira da porta; em palcos de teatro kabuki, espalha-se sal antes das apresentações para afastar os maus espíritos; e após funerais, pessoas jogam sal sobre si mesmas para evitar que espíritos dos mortos as acompanhem até em casa (TOUSSAINT-SAMAT, 2003).
Na tradição judaica, o sal é parte da aliança entre Deus e seu povo. O Livro do Levítico prescreve: Conforme o Livro do Levítico: “Toda oferta com sal será temperada com o sal da aliança do teu Deus” (Lv 2,13). Entre hebreus, árabes e gregos, comer sal com alguém simbolizava amizade, hospitalidade e confiança mútua. Na cultura do Oriente Médio, partilhar sal selava acordos e criava vínculos indissolúveis.
O sal também aparece como elemento protetor em diversas crenças: nos países nórdicos, é colocado ao lado dos berços para proteger os bebês; no Marrocos, nos cantos escuros das casas para afastar maus espíritos; no Havaí, polvilha-se sal sobre o corpo após enterros (FLANDRIN; MONTANARI, 2001). Para os gregos antigos, Homero conferiu caráter sagrado ao sal ao narrar que Nereu, rei do mar, o ofereceu como presente de casamento a Peleu.
Na Umbanda Sagrada, conforme ensina Rubens Saraceni (2010), o sal é reconhecido como um dos elementos mais eficazes para o reequilíbrio vibracional e a quebra de cargas negativas. Seu uso é comum em rituais de limpeza espiritual, banhos de descarrego, defumações e firmezas. O sal grosso, especialmente, age como um condutor de energias densas para o plano etéreo, desagregando miasmas, invejas, larvas astrais e pensamentos negativos. Ele é utilizado em conjunto com ervas, águas e elementos naturais, compondo trabalhos de proteção e fortalecimento da aura.
Para Saraceni, o sal carrega o poder da vibração cristalina da terra e, quando usado com consciência ritualística, atua como “um elemento mágico e sagrado, capaz de purificar o campo energético humano e impedir a aproximação de energias desequilibradas” (SARACENI, 2010). Ao ser colocado em ambientes, em círculos ou sobre o corpo, ele não apenas protege: sela pactos de luz com as forças da natureza.
A abrangência desses significados revela a universalidade do sal como símbolo. Toussaint-Samat (2003) sintetiza: “Entre os alimentos simbólicos, nenhum é mais carregado de significados do que o sal: ele purifica, preserva e une”.
O Arroz: fertilidade, fartura e gratidão
O arroz, alimento essencial em boa parte da Ásia, está profundamente ligado à fertilidade, prosperidade e à espiritualidade. Na China, é tradição colocar uma tigela de arroz nos túmulos dos antepassados no Ano Novo, como oferenda de agradecimento e pedido de proteção. Nos casamentos, o costume de jogar arroz sobre os noivos – prática que se espalhou também pelo Ocidente – simboliza fertilidade e abundância (FLANDRIN; MONTANARI, 2001).
No Japão, o sekihan – arroz vermelho cozido com feijão azuki – é consumido em aniversários, festivais e datas especiais, representando boa sorte. Tradicionalmente, esse arroz era comido no primeiro e no décimo quinto dia de cada mês, como forma de atrair boas energias e proteção espiritual. Desperdiçar arroz é visto como um ato desrespeitoso e espiritualmente impuro, pois o alimento é considerado sagrado e abençoado pelos deuses da colheita. Além disso, o arroz era tradicionalmente usado para afastar espíritos malignos dos lares, reforçando seu papel simbólico de purificação e harmonia (TOMIOKA, 2009).
O simbolismo do arroz não se limita ao sagrado, mas permeia a moral, os costumes e a identidade: “Os alimentos como o arroz não apenas nutrem, mas reafirmam o pertencimento a uma cultura e a um conjunto de crenças e valores” (FLANDRIN; MONTANARI, 2001, p. 72).
Alimentos sagrados e identitários por região
Diversos ingredientes centrais em suas respectivas culturas foram elevados à condição de símbolos religiosos, míticos ou históricos:
- Trigo: na tradição cristã, o trigo representa a matéria do pão eucarístico, símbolo do corpo de Cristo. Entre os povos árabes e europeus, é também símbolo de abundância e fertilidade.
- Milho: para os maias, astecas e outros povos ameríndios, o milho é sagrado. O Popol Vuh, livro sagrado maia, relata que os primeiros homens foram criados a partir do milho.
- Mandioca: base da alimentação indígena brasileira, a mandioca aparece em mitos como o de Mani[1], a criança que morreu e deu origem ao tubérculo – um símbolo de vida e ancestralidade.
- Batata: cultivada nos Andes pelos incas, era considerada um presente divino. Mais tarde, tornou-se símbolo de resistência alimentar na Europa, como na Irlanda, onde é base do tradicional stew (ensopado).
- Feijão: depois de substituírem o phaselus medieval, os feijões do Novo Mundo se disseminaram pela Europa, sendo adotados na culinária italiana, francesa e dos Bálcãs.
- Tomate, pimentão, amendoim, baunilha e chocolate: produtos originários das Américas e introduzidos na Europa após as Grandes Navegações, carregam consigo novas simbologias, usos e sabores que transformaram a cultura alimentar ocidental (PITTA, 1999).
Alimentação e religião: limites e escolhas
A alimentação também serviu para marcar fronteiras religiosas. Uma antiga lenda do Império Bizantino ilustra isso. No ano 986, o príncipe Vladimir I de Kiev, buscando uma religião oficial para seu povo, convocou representantes das grandes religiões. A dieta proibitiva do islamismo e do judaísmo (que vetava carne de porco e bebidas alcoólicas) e os jejuns rigorosos dos cristãos romanos levaram Vladimir a escolher o cristianismo ortodoxo, cujos costumes alimentares pareciam mais acessíveis (TOUSSAINT-SAMAT, 2003). Esse episódio fictício revela como os códigos alimentares moldavam, inclusive, decisões políticas.
Alimentos e oferendas na Umbanda Sagrada
Nas religiões de matriz afro-brasileira, como a Umbanda Sagrada, os alimentos possuem função ritualística, simbólica e energética. Cada alimento é escolhido não apenas por suas propriedades físicas, mas por sua vibração espiritual e ligação com as forças da natureza e os orixás, guias e entidades.
Segundo Rubens Saraceni, a Umbanda trabalha com o princípio das vibrações alimentares e do axioma vibracional dos elementos da natureza. Os alimentos utilizados nas oferendas – ou firmezas, como também são chamadas – servem como veículo de energias que nutrem e fortalecem a conexão com planos espirituais. Entre os elementos mais comuns estão:
- Milho branco e amarelo: ligado à fartura e ao orixá Oxóssi, representa a colheita e a prosperidade.
- Coco: associado à pureza e à proteção, usado em oferendas a Iemanjá e Oxalá.
- Mel: símbolo de doçura, conciliação e cura. Presente nas oferendas a entidades como Oxum.
- Azeite de dendê: traz a força do fogo e está associado a Exu e Ogum.
- Feijão preto ou fradinho: representa o alimento básico e é ligado à ancestralidade e ao trabalho espiritual de base.
- Farofa, frutas, caldos e bebidas: cada combinação varia conforme a entidade e o propósito ritual.
Esses alimentos são organizados em pontos específicos da natureza – mata, mar, encruzilhada, cachoeira, pedra – onde sua vibração é potencializada. “Os alimentos, quando utilizados com consciência ritualística, não são apenas oferendas: são veículos de cura, equilíbrio e transformação” (SARACENI, 2010, p. 147). Ao contrário de outras tradições em que o alimento é consumido, na Umbanda ele é ofertado como energia espiritual doada, devolvida à natureza em um ciclo de troca e comunhão.
Novos produtos, novos sentidos
Com a expansão marítima dos séculos XV e XVI, o simbolismo dos alimentos ganhou novos contornos. As grandes navegações não apenas conectaram continentes, mas também promoveram trocas culinárias que redefiniram hábitos, sabores e significados em diversas culturas. Produtos originários das Américas, antes desconhecidos pelos europeus, passaram a circular amplamente e, em muitos casos, foram ressignificados.
A batata, cultivada pelos incas nas regiões andinas onde o milho não se desenvolvia bem, foi levada à Europa por volta de 1530. Inicialmente usada como alimento para porcos, só no século XVII começou a ser valorizada como alimento humano. Com o tempo, tornou-se base alimentar em diversos países, como a Irlanda, onde integra o tradicional stew[2]. A batata simboliza, ainda hoje, resiliência alimentar e adaptação.
O milho, levado para a Europa por Cristóvão Colombo em 1493, foi plantado inicialmente de forma marginal, muitas vezes como forma de escapar da tributação dos senhores feudais. Ao ser incorporado à dieta humana, deu origem a preparações como a polenta no norte da Itália – alimento de resistência e símbolo de simplicidade. No entanto, a deficiência nutricional do milho quando consumido isoladamente foi responsável por epidemias de pelagra em algumas regiões europeias.
O tomate, o feijão do Novo Mundo, o pimentão e o amendoim também conquistaram espaço nas cozinhas europeias. O pimentão, por exemplo, ganhou protagonismo na culinária da Hungria, onde deu origem à páprica. O peru, chamado na época de “galinha da Índia”, passou a integrar os grandes banquetes, substituindo aves nobres como pavões e cisnes medievais. E o chocolate, inicialmente consumido com pimenta pelos povos mesoamericanos, foi adoçado na Europa e lentamente transformado em um dos alimentos mais valorizados do mundo moderno. A baunilha, usada pelos astecas para perfumar o chocolate, também passou a ser cultivada globalmente após o desenvolvimento da polinização artificial.
Esses produtos, uma vez incorporados a novas culturas, passaram a carregar novos sentidos simbólicos, afetivos e sociais, ilustrando como a alimentação é, antes de tudo, um campo dinâmico de trocas culturais e reinvenções.
Conclusão
A simbologia dos alimentos revela que, mais do que nutrir o corpo, a comida alimenta vínculos, crenças e memórias. Desde o sal que sela alianças, o arroz que traz fertilidade, até o milho que molda a origem dos povos ameríndios e os elementos ofertados aos orixás na Umbanda Sagrada, os alimentos expressam relações profundas com o sagrado, com o outro e com a natureza.
Cada cultura, ao atribuir significados a seus ingredientes essenciais, registra uma forma singular de ver e interpretar o mundo. Esses significados não são estáticos: atravessam gerações, cruzam fronteiras, transformam-se e, muitas vezes, permanecem vivos nos rituais, nas festas, nas tradições orais e nos gestos cotidianos à mesa.
Como bem destacou Rubens Saraceni, os alimentos podem ser instrumentos de cura e conexão espiritual; como lembrou Lévi-Strauss, eles também são “bons para pensar”. Reconhecer a carga simbólica daquilo que comemos é, portanto, um caminho para compreender melhor as culturas, os povos e a nós mesmos.
[1] Segundo a tradição indígena tupinambá, Mani era uma criança de pele clara, filha de uma jovem indígena que engravidara misteriosamente. Após sua morte precoce, Mani foi enterrada dentro da oca, e, tempos depois, brotou do solo uma planta com raiz branca e nutritiva — a mandioca. O nome deriva de “Mani + oca” (a casa de Mani). Esse mito de origem confere à mandioca um valor sagrado entre muitos povos indígenas brasileiros, sendo vista como um presente espiritual e símbolo da ancestralidade.
[2] stew: prato tradicional europeu feito com carne, legumes e temperos cozidos lentamente em líquido, resultando em um guisado saboroso e nutritivo. No norte da Itália, o termo está associado a preparações simples e rústicas feitas com farinha de milho, como a polenta, consumida historicamente como alimento de resistência.
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FONTES IMAGENS:
CAPA: Adriana Tenchini
REFERÊNCIAS:
FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org.). História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
NIEMEYER, Jacqueline. Lendas indígenas do Brasil. São Paulo: Paulus, 2001.
PITTA, Fernando. História Ilustrada da Alimentação: da Pré-História aos Dias de Hoje. São Paulo: Publifolha, 1999.
SARACENI, Rubens. Doutrina e Ritual da Umbanda Sagrada. São Paulo: Madras, 2010.
TOUSSAINT-SAMAT, Maguelonne. História natural e moral dos alimentos. São Paulo: Senac, 2003.
TOMIOKA, Hiroko. Costumes Japoneses: Tradições e Curiosidades. São Paulo: JBC, 2009.
